Álbum, que tem duração de quase duas horas, reunindo 33 faixas, entre elas a inédita “Um Baiana”, chega nesta segunda (26), às plataformas digitais de áudio e vídeo
Escute o álbum:https://SMB.lnk.to/CaetanoeBethaniaAoVivo
Por Leonardo Lichote
Por volta dos 15 minutos do show da turnê “Caetano & Bethânia”, surge “Motriz” . Escrita pelo compositor a partir de memórias da irmã de uma viagem feita por ela e Dona Canô no Motriz, como era chamada o trem que ligava Santo Amaro a Salvador, a canção guarda um tanto da matéria de que é feito o espetáculo — lançada agora como o álbum “Caetano & Bethânia” (Sony Music).
O trajeto de Santo Amaro a Salvador — do berço para o mundo. A memória como a terra fêmea onde tudo se assenta — e o céu macho onde tudo se projeta. Uma mãe. A voz que carrega a mãe e a voz da mãe que carrega tudo. A voz da canção, que diz o que eu não sei, que diz o que eu quis e não fiz. A fé materializada na Penha e no mistério divino e terreno da chama verde do canavial. A Matriz, o Motriz. A origem, o movimento.
Tudo ali atravessa a história que se conta no show em 42 canções — distribuídas em 33 faixas no álbum, uma delas a inédita “Um Baiana” , que Caetano compôs durante a turnê. Da invasão amorosa dos Doces Bárbaros à paz vigorosa do BaianaSystem; da celebração plural da religiosidade brasileira à saudação à Mangueira; da lembrança de Gal Costa às evocações do Recôncavo baiano; da rítmica buliçosa ao romantismo rasgado.
Uma história, enfim, que cobre as seis décadas de carreira — e uns tantos anos a mais de vida — de Caetano e Bethânia. E que se lança também sobre a trajetória do Brasil ao longo desse período. Afinal, mais do que testemunharem esse caminhar, eles ajudaram a definir em grande medida a forma como nos olhamos no espelho enquanto país.
Algo que se afirma já em “Alegria, alegria” , primeira canção do show. Fundadora da Tropicália em 1967, ao lado de “Domingo no parque” de Gilberto Gil, a composição de Caetano documenta o surgimento do movimento e o Brasil no qual ele se inseria, governado por uma ditadura militar. Era nesse ambiente que o baiano se anunciava “Caminhando contra o vento/ Sem lenço, sem documento”. O verso que abre o espetáculo, dito agora em nome dos dois irmãos, reforça seu sentido de desafio quase 60 anos depois, ao mesmo tempo em que remete a um ponto de partida. Da mesma forma, “O Sol nas bancas de revista”, primeiro verso a ser entoado por Bethânia sozinha no disco, soa em sua voz nova e ancestral. Matriz e motriz, portanto, como tudo que se ouvirá ao longo das quase duas horas seguintes.
Originalmente uma espécie de marchinha iê-iê-iê, “Alegria, alegria” ganha acento baiano em nova versão. O arranjo segue a sonoridade desenhada no espetáculo pelos diretores musicais Jorge Helder e Lucas Nunes, que combina de um lado a exuberância à altura da grandiosidade das arenas pelas quais o show passou e, do outro, a sutileza de chão brasileiro. À frente, a moda dos sopros e a malícia das percussões — e vice-versa.
A banda responsável pela sonoridade tem 14 membros em sua formação: Joana Queiroz (clarone, clarinete e sax); Jorge Continentino (sax, clarinete e flautas); Marlon Sette (trombone); Diogo Gomes (trompete e arranjos); Paulo Dáfilin (viola e violão); Rodrigo Tavares (teclados); Jorge Helder (direção musical, arranjos e baixo); Lucas Nunes (direção musical, arranjos, violão e guitarra); Kainã do Jêje (bateria e percussão); Thiaguinho da Serrinha (percussão); Pretinho da Serrinha (percussão, anunciada no show como “participação especial”); e o trio Janeh Magalhães, Jenni Rocha e Fael Magalhães (vocais).
Os arranjos testemunharam um olhar rico sobre as tradições vivas da música brasileira e além dela. Há muitos exemplos espalhados no disco: o samba-jazz que se insinua no terreiro do Gantois no meio de “Dedicatória” ; o samba de roda com ares de pagodão que brota de “Reconvexo” ; os tamborins dialogando com o intrincado e empolgante arranjo de sopros de “Gente” ; o samba-reggae encontrando a Black Rio em “A tua presença morena” ; o maracatu-jazz de “Tropicália” ; o gospel à brasileira destilado no DNA do trio de vocalistas.
“Alegria, alegria” é uma das três canções do roteiro que estava presente no encontro anterior da dupla, em 1978 — as outras duas são “O leãozinho” e “Tudo de novo” . Ou seja, ela remete ao momento de muitos em que as histórias de Caetano e Bethânia, entrelaçadas desde o nascimento, se cruzaram de forma mais nítida. O mesmo ocorre com o número seguinte do programa, “Os mais doces dos bárbaros” , espécie de carta de interesse dos Doces Bárbaros, grupo que os irmãos formaram em 1976 ao lado de Gal e Gil.
Uma curiosidade sobre a canção: desde seu lançamento seu nome vem sendo grafado errado. ” [Na época do lançamento] , a gravadora ‘corrigiu’ para ‘Os mais doces bárbaros’. Reclamei disso por anos”, esclarece Caetano. Agora, enfim, ela sai com o título correto.
Esse primeiro segmento do show demarca um certo chão da história comum de ambos — algo feito ao longo de todo o show, mas que aqui parece ter um caráter fundante. “Gente”, por exemplo, cita Bethânia em sua letra, uma ode à grandeza da vida humana em contraste com condições de desigualdade e fome. Já “Oração ao Tempo” se dirige a esse que par sobre o espetáculo, definido por Caetano como “um dos deuses mais lindos”. Lindeza evidente nas vozes dos irmãos, plenas de Tempo, se alternando nas estrofes.
“Motriz” aparece no show mesclado à tropicalista “Não identificado” . Na primeira, um trem parte de Santo Amaro. Na outra, um disco voador chega à cidade, trazendo uma canção de amor, um “iê-iê-iê romântico”. Mesmo sem os timbres jovenguardistas e as estranhezas espaciais das gravações originais de Gal e de Caetano, o arranjo mantém a dinâmica de lirismo ingênuo cortado pela tensão final.
Composta por Caetano para Nossa Senhora, conforme Bethânia revelou anos depois de seu lançamento, “A tua presença morena” segue insinuando o sagrado em meio ao terreno, como logo antes fez “Oração ao Tempo” e “Motriz”. Ela abre espaço para o momento do show em que se mostra de maneira mais marcada um de seus eixos centrais: a fé e as manifestações que ela assume no Brasil.
“Milagres do povo” — dos versos “Quem é atéeu e viu milagres como eu/ Sabe que os deuses sem Deus não cessam de brotar/ Nem cansam de esperar” — abre a sequência. “Filhos de Gandhi” convoca os orixás e divindades católicas para o desfile do afoxé baiano (“Isso é Gil”, brada Caetano na introdução do ijexá). Também está aí “Dedicatória”, feita em honra de Mãe Menininha do Gantois, que iniciou os dois irmãos no candomblé — juntos porque, ela afirmava, eles eram a mesma pessoa.
O segmento inclui ainda o canto para Oxum “Ia Omim Bum”(“a mãe do fundo das águas”, numa tradução livre do iorubá) e “Eu e água” , das muitas canções do show compostas por Caetano e lançada por Bethânia. A religiosidade aparece ainda em outros momentos do show, mais especialmente nas duas maiores surpresas do roteiro: o louvor evangélico “Deus cuida de mim” , cantada pelo baiano em seu momento solo; e “Fé” , sucesso de Iza.
A primeira já foi gravada por Caetano em 2022, em dueto com o pastor Kleber Lucas. Já ali, ela se revelou um reflexo do interesse do baiano pela comunicação evangélica, manifesto em diversas entrevistas nos últimos anos. A ocorrência causada por curto-circuito numa parte significativa da plateia, que se viu confrontada com seus próprios preconceitos por seu ídolo octogenário — que deveria reafirmar suas certezas, não questioná-las. Já a canção de Iza entrou no show por sugestão de Bethânia, que a define certa vez como “a cara de hoje do mundo, do Brasil, de nós, da música popular brasileira”.
“Tropicália” (composta e lançada por Caetano em 1968) e “Marginália II” (gravada por Bethânia e pelo autor Gil no mesmo 1968) trazem agora os irmãos juntos. Ambas são filhas da mesma tensão pré-AI 5, e refletem isso em imagens grotescas que se cruzam com manifestações de saúde do Brasil que se afirmam a despeito da dor. Os arranjos traduzem saúde e tensão de forma sensível e opulenta.
A redenção humana pela figura de um indígena anunciada em “Um índio” ganha novos sentidos nesta terceira década do século XXI — ou reforça seu sentido original, “oculto quando terá sido o óbvio”. Feita por Caetano para Bethânia cantando, ela é outra pinçada do repertório dos Doces Bárbaros.
O xote existencial “Cajuína” ganha leitura festiva que parece querer asseverar a força da vida sobre a morte — sua letra refere-se ao suicídio de Torquato Neto, o “menino infeliz” dos versos. Depois dela, tem início o momento solo de Caetano, aberto com “Sozinho” na consagrada interpretação de voz e violão que se tornou a música um megahit — agora com o reforço do violão de Lucas Nunes. O segmento tem ainda “O leãozinho”, “Você não me ensinou a te esquecer” , em arranjo que incorpora samba-reggae e ares de western spaghetti ao seu universo brega, “Você é linda” , com sopros que a fazem soar como uma canção de Roberto Carlos e Erasmo Carlos, e “Deus cuida de mim”.
Bethânia assume então o palco com o verso “Quem me chamou?”, de “Brincar de viver” . É o momento do show em que o romantismo se mostra em núcleos mais fortes. “Não dá mais pra segurar (Explode coração)” ganha bela leitura no qual a emoção precisa de Bethânia dialoga com o teclado de Rodrigo Tavares. “As canções que você fez pra mim” traz, agora para valer, a presença de Roberto e Erasmo, que já veio emparelhando há alguns minutos. “Negue” se destaca, com seu espírito seresteiro ganhando suingue insuspeito nas percussões.
Juntos no palco, Caetano e Bethânia flutuaram sobre agogôs e piano para celebrar a Mangueira na perfeita “Sei lá, Mangueira” , de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho, emendando os sambas da escola de 1994 ( “Atrás da Verde-e-Rosa só não vai quem já morreu” , em homenagem a Caetano, Bethânia, Gal e Gil) e 2016 ( “A menina dos olhos de Oyá” , do enredo dedicado à Bethânia). Por fim, sauda a Verde-e-Rosa com o clássico “Exaltação à Mangueira” .
É o segundo pot-pourri do roteiro. No primeiro terço do show, eles já evocaram o Recôncavo baiano com uma sequência de sambas de roda que pôs religiosidade, política, festa, trabalho e sensualidade pisando o mesmo chão de terra: “13 de maio” , “Samba de dois” , “Cosme e Damião” , “Lindomar” e “A donzela se casou” .
Depois da lembrança dos Doces Bárbaros sob o olhar da Mangueira, uma homenagem a Gal. “Ela foi o mais perfeito eco da bossa nova e se tornou a mais bela versão do que tinha de neorock’n’roll no tropicalismo”, diz Caetano. Na sequência, os irmãos reafirmaram isso ao cantar o eco da bossa nova “Baby” e o neorock’n’roll tropicalista “Vaca profana” , ambos eternizados por Gal. É bonito ouvir Bethânia nas duas canções, com as quais tem ligação profunda. “Baby” nasceu de uma encomenda dela ao irmão, enquanto que “Vaca profana” a cita em um verso, “Quero que pinte um amor Bethânia”.
O rock segue com um clássico do repertório de Bethânia. “Gita” , parceria de Raul Seixas e Paulo Coelho, afirma em primeira pessoa uma identidade incapturável, assim como a canção que a sucede, “O quereres” . A complexidade do arranjo atua ao lado da pressão que mira no crescendo da reta final do show. Alternando samba e samba-reggae, “Fé” prepara o terreno para a alegria verão-em-Salvador de “Reconvexo”.
“Tudo de novo” é a celebração do que os mantém vivos e que se mantém vivo neles: “Minha mãe, meu pai, meu povo”. A canção que abriu o show que Caetano e Bethânia fizeram em 1978, data este encontro de forma festiva. Novamente, portanto, matriz e motriz.
Depois, o futuro — motriz-motriz. O disco se encerra com a inédita “Um Baiana” samba-reggae que toma o furor da não-violência do BaianaSystem como modelo de instauração da paz no mundo. Quase se consegue ouvir o eco de “Alegria, alegria”, o canto de duas horas antes, de 60 anos antes, de 60 anos à frente, no qual Caetano e Bethânia desafiam: “Por que não?”.



Assessoria de Imprensa – Sony Music
Ana Paula Aschenbach – anapaula@perfexx.com.br
Lucas Damião – lucas@perfexx.com.br
Mariana Ghetti – mariana.ghetti@sonymusic.com